O Grito das Estátuas - Santo Souza
Nem um ser vivo entre as ruínas! — Só,
dentro do tempo, a negra sentinela
da noite ronda... Nem uma janela
consegue abrir a pálpebra! No pó
branco da luz que cai dos astros, passa
o fantasma da angústia e da desgraça.
Longe, na espreita, os morros, pensativos,
com o capote da noite sobre os ombros,
são espectros, talvez, dos primitivos
vigias da cidade, agora sob escombros.
Por isto essa imponência grave — o porte
que ainda conservam, mesmo após a morte.
Que dirão esses ventos vagabundos
nas ruas, conversando pelas portas?
Não há ninguém nestas paragens! Mortas
de medo, as torres buscam outros mundos
onde haja menos lágrimas, e aonde
possa levar o que a sua alma esconde...
Não sei por que é que a minha própria sombra
me olha, do chão, com um aspecto que me assombra!
O olhar frio das luzes, nos espaços,
é de surpresa, e como que procura
ver, através da silhueta escura
da cidade, o rumo de meus passos.
Aterram-me estas árvores estranhas!
Com os braços nus, furando a noite! Com
esse gemido! E as vozes, cujo som
parece vir de dentro das montanhas...
Vozes talvez do mar... Vozes trazidas
por alguma legião de almas perdidas.
E essa atitude trêmula das cousas.
Das cousas, vendo os pés da ventania
agoniada, e que, no auge da agonia,
vai rebentando o mármore das lousas,
de onde os mortos, com os braços estendidos,
fogem correndo aos gritos e aos gemidos!
E o mar fantasma: as ondas levantadas
assim, suspensas no ar, petrificadas,
como se acaso o tempo ali cobrisse
tudo que existe — a vida, a terra, as mágoas —
num sudário de escombros e velhice,
petrificando até as próprias águas!
Corro a indagar dos mortos o segredo
que há nos restos dos braços das arcadas!
Grito às ruínas! Aos túmulos! E quando
olho em torno de mim, vejo, com medo,
os olhos das estátuas assombradas
com os seus braços de pedra me acenando!
E eu que tentei salvar esta cidade
das mãos da ruína e escuridão medonha...
Que pensei devolvê-la à humanidade
cheia do amor e paz com que ela sonha,
fujo-lhe do ódio, perseguido pelas
acusações das pedras! Das estrelas!
E dos mortos que, heréticos e aflitos
como uns demônios, vêm correndo, assim,
entre protestos, lágrimas e gritos,
com as estátuas clamando atrás de mim...
(Cidade Subterrânea - 1953)